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Dez anos de Ditadura No Ar

O primeiro quadrinho autoral que publiquei foi Ditadura No Ar, magistralmente desenhado e colorido pelo Abel (Rafael Vasconcellos), que conheci no FIQ – Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte de 2009.

Muita gente sabe, mas fui um garoto criado na periferia da Zona Leste de São Paulo e minha formação de leitor foi com quadrinhos e livros de segunda mão. Comprava muita HQ de um senhor que vendia no chão da Avenida Mateo Bei. A leitura era toda fragmentada. Apesar de amar, nunca passou pela minha cabeça ser roteirista de quadrinhos. Acreditava que para trabalhar com a minha paixão, teria que abrir um sebo. Ou seja, publicar um quadrinho era algo que eu nem era capaz de sonhar.

Por isso, apesar de já ser editor da MAD por cinco anos, foi um verdadeiro desafio começar um projeto independente. Eu estava fazendo o impossível para mim. Além disso, em 2010, lançar uma HQ do próprio bolso era bem diferente do que é hoje. Não havia financiamentos coletivos, os incentivos públicos eram bem restritos e as redes sociais eram a melhor ferramenta de divulgação. Na época, elas funcionavam.

A série começou como uma tirinha on-line para o saudoso blog Contraversão, mas foi no primeiro número impresso que o projeto tomou forma. Lançado durante o FIQ – Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte de 2011, Ditadura No Ar 1 era um gibi em formatinho (aquele da Editora Abril, lembra?) e tinha 20 páginas. Fizemos 500 cópias. Levei 300. Voltei sem nenhuma.

Muita gente comentou! Ficou eletrizada pelas continuações e fomos produzindo com muita dificuldade um número por ano, até completar a série em 2015.

Nesse meio tempo, ganhamos o Troféu HQMix nas categorias de Roteirista – Novo Talento (2013) e Minissérie (2016). Foram inúmeras resenhas e comentários de leitores. De todas as opiniões e leituras de DNA, o vídeo ensaio do canal Meteoro Brasil foi uma das que mais me marcou. Ressignificou a obra para o mundo pós-eleições de 2018.

O que poucos sabem é que a série nasceu da minha frustração de não ter aprendido sobre o Regime Militar brasileiro na escola. Muito menos na faculdade, já que o professor que lecionou Brasil Independente II encerrou seu curso em 1950. Deixando uma dolorosa lacuna em minha formação.

Por isso, estava sempre perguntando para todo mundo que viveu a época: como era estar ali? Lembra de alguma situação específica? Você chegou a sofrer na mão da PM? Como era ser aluno universitário? Por que vocês não arredavam pé? O que vocês ouviam? Quais eram as gírias da época? Quem eram os comunistas?

Na maioria das vezes, as pessoas me respondiam com uma certa nostalgia. Contando detalhes e causos que nunca poderia imaginar e que me marcaram profundamente. Algumas pessoas ainda temiam dizer o que haviam passado, mas contavam em tom de confidência. Foi um trabalho de História Oral, mas com a leveza da narrativa ficcional.

Outra fonte importante de informações foi a música. Até aquele momento, não gostava muito de MPB, e foi com a pesquisa do projeto que me tornei um verdadeiro apaixonado pela época. Tive a oportunidade de adquirir diversos LPs e EPs de 1968 e 1969, que era o período dessa história que estava gerindo. Até mesmo estão marcadas nas páginas da história e no título dos capítulos.

As músicas citadas são: “Coração Selvagem”, de Belchior; “Eu quero botar meu bloco na rua”, de Sérgio Sampaio; e “É proibido proibir” e “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.

Os personagens principais foram construídos como uma sincera homenagem aos meus familiares. Afinal, Félix Panta é uma junção de nomes do pai e do avô do Seu Nelson, meu pai, e a Lenina é claramente uma referência à Dona Nina, minha mãe. Os personagens têm características próprias, mas são temperados com coisas que amo nessas duas pessoas tão importantes para mim.

Tenho muito orgulho da parceria que construí com o Abel. Poucas vezes em minha vida, pude fazer um trabalho artístico com uma relação tão íntima de amizade, criatividade e respeito. Acreditamos muito em tudo o que estávamos fazendo, botamos nossos sonhos, paixões e dedicação naquelas páginas. Abel trouxe inúmeros elementos especiais, cores fantásticas e uma narrativa pulsante. 

Nunca vou esquecer de como fizemos o final da HQ. Liguei para o Abel e disse: meu amigo, o final será este. Ele não aceitava. Eu também não. Mas perguntei: você consegue pensar em outro caminho? Nós escrevemos a história sem planejar isso. A ideia era fazer a série continuamente, porém, as pessoas exigiam um final e precisavam saber o que ia acontecer. Chorei muito escrevendo a última edição e fiquei muito feliz em saber que o Abel teve o mesmo impacto emocional. O quadrinho era o nosso sonho se materializando. Nossa vontade tomando forma.

Ditadura No Ar – Coração Selvagem é mais do que uma história em quadrinhos para nós. Foi uma verdadeira jornada de autodescoberta e entendimento de que éramos contadores de histórias, que nosso dever era mostrar para o mundo a nossa visão. Lá em 2010, nada disso parecia tão urgente. Hoje, o tema deste quadrinho é tão subversivo quanto foram as ideias progressistas em meio ao Regime Militar iniciado em 1964 com um golpe. Vivemos um período desesperador, com lideranças bélicas, ufanistas e egocêntricas. Morremos em meio a uma pandemia que atingiu todo o planeta, mas que no Brasil encontrou um terreno fértil no negacionismo e na corrupção da extrema direita.

Após 10 anos, DNA é um grito. Uma lembrança. Uma dor nunca resolvida. Uma memória que arde no fundo da cabeça deste país. E também é o início do meu sonho sobre um pesadelo que nem acredito que ainda estamos vivendo. Torço e luto para que quando este quadrinho fizer 20 anos, a gente possa se orgulhar de ter ultrapassado o conservadorismo e o pensamento reacionário. Que sejamos felizes, livres e responsáveis.

A Editora Draco lançou um encadernado compilando as quatro edições, páginas extras, rascunhos e comentários de produções. Caso tenha despertado sua curiosidade, adquira seu exemplar aqui!

1 comentário em “Dez anos de Ditadura No Ar”

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