Escrever um texto sobre a ficção científica no audiovisual brasileiro foi um desafio enorme, principalmente ao perceber que não entendia absolutamente nada sobre o assunto. Tudo ficou ainda pior quando tentei entrevistar alguns escritores veteranos e pesquisadores da FC nacional e ficou claro que nenhum deles também sabia patavinas desses filmes. Ao invés de me assustar, percebi que o que você está lendo agora não só era muito importante, quanto era uma obrigação sair dessa experiência com alguma bagagem sobre nosso cinema de ficção científica e também fazer a minha parte para que mais pessoas descubram essa produção.
Comecei a refletir sobre a origem dessa falta de interesse ou mesmo da falsa percepção de que simplesmente é “impossível fazer ficção científica de qualidade no Brasil”. As raízes desse paradigma podem estar na política imposta por Portugal durante a colonização do território que se tornaria o Brasil. Até o final do século XIX, somente após a Independência, pudemos produzir produtos manufaturados ou industrializados, que eram proibidos para que os colonos tivessem um controle maior do desenvolvimento. Afinal, o território da colônia brasileira tinha o papel de fornecer mão de obra escrava e matéria prima para o mercado europeu. Fomos domesticados a acreditar que ciência e tecnologia é algo que deve ser exportado e a fabricação nacional sempre tem esse sabor do proibido e da criança que nunca sabe plenamente o que está fazendo.
“Por outro lado, a história do Brasil já é, por si, a história de uma invasão alienígena: naves chegam de lugares distantes, e seus viajantes dominam tudo. Doenças são espalhadas involuntariamente (às vezes de propósito) entre a população nativa. Os “aliens” sequestram pessoas e as escravizam. Desde sua fundação até os dias atuais, o Brasil é dividido em classes e governado por psicopatas que fazem o Imperador Palpatine, de “Star Wars”, parecer uma freira caridosa. Nosso país é, inteiro ele, um grande plot de ficção científica”, provocou o escritor de ficção científica e filósofo Alexey Dodsworth.
O mesmo não acontece com outras produções de gênero fantástico, como o terror e a fantasia que parecem mais naturais à superstição, folclore e religiosidade da nossa cultura. Todo mundo aceita a possibilidade de um Sítio do Pica Pau Amarelo e de uma história de fantasmas que tenha como cenário qualquer território brasileiro. Certamente, o cinema, a literatura, os quadrinhos e a televisão tem dezenas de exemplos relativamente bem-sucedidos de produções nacionais desses dois gêneros. O mesmo já não pode ser dito da ficção científica, que exige um conhecimento científico e investimento maior.
“Como o próprio nome já diz, embora em contradição, ficção cientifica pressupõe uma ciência por trás, mesmo que fantasiosa precisa de um método, de leis que regem esse universo, e isso demanda tempo, estudo e coesão, portanto, no caso do cinema, dinheiro.”, afirmou o cineasta Kapel Furman. O que significa que outro fator determinante desse verdadeiro apagão do cinema de FC nacional é que ele demanda estudo, pesquisa e investimentos maiores do que a nossa “indústria cinematográfica” é capaz de absorver financeiramente.
As raízes dessa incapacidade de aceitar uma produção nacional de cinema de ficção científica estão arraigadas no imaginário da população brasileira. Mas isso significa que esses filmes não existem? Aqui está a grande reviravolta dessa história toda, a produção aconteceu durante toda a história do audiovisual brasileiro, com registros de curtas-metragens rodados desde 1907, além de uma produção de longas e séries durante os anos 1960, 1970 e 1980. Para falar a verdade, apesar de modesta, ela acontece até hoje através do cinema independente e experimental. Encontrei dificuldade em encontrar especialistas e escritores do gênero no Brasil que conhecessem a nossa produção. Por sorte, uma lista com dezenas de filmes me foi fornecida como um ponto de partida.
Do que estava listado, fiquei realmente impressionado com a qualidade de alguns longas dos anos 1960, dos quais destaco: a chanchada “Os Cosmonautas” (1962), dirigido por Victor Lima e estrelado pelos humoristas Grande Otelo e Ronald Golias, que retrata um Brasil que venceu os Estados Unidos e a União Soviética na corrida espacial; o suspense com influências hitchcockianas “O 5º Poder” (1962), dirigido pelo italiano Alberto Pieralisi, que retratou uma conspiração internacional de manipulação midiática com belas cenas de ação; e fábula kafkaniana “O Homem que Comprou o Mundo” (1968), de Eduardo Coutinho, que mostrava o personagem interpretado por Flávio Migliaccio quebrando o capitalismo ao tentar compensar um cheque de uma valor maior que a economia mundial poderia absorver – por sinal, o filme faz uma grande crítica ao capitalismo e alfineta o pensamento comunista. Só esse trio destruiu todos os meus paradigmas sobre cinema nacional de ficção científica. Porém, era só o começo da minha jornada.
Se o padrão era que o Brasil não é capaz de produzir ciência e tecnologia de ponta nem na ficção científica, produzir cinema desse gênero era inclusive uma forma de enfrentar o sistema. Não foi a toa que um movimento transgressor como a tropicalismo, que até mesmo ousou colocar guitarras em músicas dos festivais e falava de viagens espaciais (agradeça Os Mutantes), teria sua própria produção de FC. Certamente um dos maiores exemplos da contracultura brasileira é o longa “Brasil Ano 2000” (1969), de Walter Lima Jr., que tinha trilha sonora de Gilberto Gil e Rogério Duprat, no auge de sua produção tropicalista. Outros longas com viés rebelde foram O Jardim das Espumas (1970), de Luiz Rosemberg Filho, e o abstrato “Quem é Beta?” (1973), de Nelson Pereira dos Santos.
No entanto, o filme que fez a minha cabeça completamente para a qualidade do gênero foi o claustrofóbico “Abrigo Nuclear” (1981), do pioneiro do cinema baiano Roberto Pires. A obra é um sobre um futuro pós-apocalíptico causado por uma catástrofe nuclear, que isolou a humanidade nos subterrâneos em um regime ditatorial. Como em uma versão futurista de O Mito da Caverna, o longa retrata como essas pessoas foram enganadas para acreditar que a superfície sempre foi um território proibido para os seres humanos. Vale ressaltar que as vestimentas e cenografia foi toda produzida com material reciclado. Permitam-me dizer que tanto o roteiro, a fotografia e a direção não devem em nada para outras distopias estrangeiras como “Fahrenheit 451” (1966), de Ramin Bahrani, e “Fuga do Século XXIII” (1976), de Michael Anderson.
“Um grande clássico que não pode ser esquecido é “Parada 88 – Limite de Alerta” (1977), de José de Anchieta, com Regina Duarte, Iara Amaral e Cleyde Iáconis. É uma distopia nos moldes de THX 1138, com roteiro mais simplório, versando sobre poluição, mas poderia ter sido um primeiro passo para, digamos, uma adaptação de “Não Verás País Nenhum”, de Inácio de Loyola Brandão, por exemplo. Infelizmente, não foi adiante, mas provou que poderíamos fazer algo mesmo com baixo orçamento”, ressaltou o professor doutor Octávio Aragão.
Por conta do baixo orçamento, o curta-metragem também é um modelo de produção com grande produção de ficção científica brasileira. O grande destaque fica por conta de “Barbosa” (1988), de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, que mostra um viajante no tempo interpretado por Antonio Fagundes e que volta para o passado para evitar a fatídica derrota (em casa) do Brasil na Copa do Mundo de 1950. Certamente, esse é um dos filmes mais impressionantes da infinita lista de clássicos da FC no cinema.
Curiosamente, observando o plano geral das produções feitas por aqui podemos identificar alguns temas recorrentes: a distopia, a viagem no tempo, o visitante do espaço e o mockumentário.
As duas primeiras são formas de tentar corrigir escolhas ruins feitas no passado ou garantir um futuro melhor de um país devastado por algum erro grave dos governantes e da população. Com uma democracia recente e a dificuldade do brasileiro em entender que somos agentes transformadores de um país muito jovem, fica clara a nossa vontade de mudar a situação e usar a FC para criticar.
O senso crítico também está presente nas obras sobre visitas extraterrestres, como “Master Blaster – Uma aventura de Hans Lucas Na Nebulosa 2907n” (2013), de Raul Arthuso, e documentários falsos, como em “Recife Frio” (2009), de Kleber Mendonça Filho. Ambas apresentam um “olhar externo” sobre nossos costumes, problemas sociais, características culturais e dificuldades econômicas. Mais uma vez o cinema de ficção científica nacional assume um viés muito questionador, que muitas vezes contrasta com as experiências escapistas oferecidas pela produção estrangeira. Essa pode ser uma das causas da dificuldade de popularização do gênero na produção local, ela te provoca a pensar sobre nossos problemas.
Atualmente, a nossa produção mais bem-sucedida foi o longa “O Homem do Futuro” (2011), de Cláudio Torres, que mostrava um cientista interpretado por Wagner Moura e sua viagem no tempo em busca de corrigir erros que o afastaram do amor de sua vida. O filme despertou o interesse de grandes nomes da literatura fantástica nacional como Gerson Lodi-Ribeiro, mas parece não ter tido a mesma sorte com o público tendo feito uma receita de aproximadamente R$ 11 milhões (algo em torno de 1 milhão de expectadores). O problema é que custou R$ 8 milhões para ser produzido.
O cinema independente também tem produzido alguns filmes interessantes como a cinessérie “O Monstro Legume do Espaço” (1995 e 2006), de Petter Baiestorf. Perguntei sobre suas dificuldades e o diretor me respondeu “a maior é o dinheiro mesmo. É possível se fazer FC de baixo orçamento, mas trabalhar com certa segurança financeira permite um roteiro mais ousado, figurinos bem elaborados e uma direção de arte bem executada, que são coisas essenciais na minha visão de ficção científica. Só produzi FC de baixíssimo orçamento, nenhuma com o visual que tinha em mente e sempre optei por deixar os projetos em cenários mais discretos do planeta Terra, como lugares remotos”.
Conversei também com a diretora Fabiana Servilha, que fez o curta-metragem “Estrela Radiante” (2013). Apesar das dificuldades, pude perceber que a paixão é a força motora da atual produção de FC brasileira. “Filmar uma FC estava parecendo uma saga e eu sentia um risco maior na coisa toda. Vivi inúmeras soluções e saídas incríveis na produção deste filme, que dariam um curso de produção de cinema independente. Foi lindo estar em tantos festivais internacionais e viajar para os EUA com patrocínio da Copa Airlines graças a um filme feito como trabalho de conclusão de curso de baixíssimo orçamento. Tudo isso fez valer a pena.”
O futuro da ficção científica brasileira em audiovisual pode não estar exatamente no cinema, como pode comprovar a série de televisão “3%” (2016), de Daina Giannecchini, Dani Libardi, Jotagá Crema e César Charlone. Inicialmente, produzida e iniciada como uma websérie em 2010, o projeto ganhou ares de superprodução e foi o primeiro seriado nacional do canal de streaming Netflix. Apresentando uma distopia que questiona a meritocracia, os episódios refletem as principais dificuldades que os jovens encontram para serem adultos bem sucedidos no Brasil. A série se tornou um verdadeiro sucesso internacional, ganhou uma segunda temporada e teve sua terceira temporada garantida.
“A maior armadilha para a produção nacional de FC é esquecer da dramaturgia para querer fazer obras focadas em efeitos e visuais marcantes, que só são possíveis com orçamentos parrudos. As melhores obras de FC se baseiam em grandes ideias com força dramática, que podem ser resolvidas com roteiro e direção que levem em consideração formas criativas e simples de execução. Nossa forma de viver é refletida em como fazemos audiovisual – somos profundamente criativos e fazemos muito com pouco. Ainda podemos inovar muito o gênero, fugindo de estereótipos hollywoodianos e deixando uma marca brasileira. O caminho é expressarmos nossa condição de país em desenvolvimento, que sofre com a violência e a desigualdade social, mas que também inova na ciência e na cultura. Tanto no cinema quanto na TV e no streaming, a tendência é que a produção de gênero no Brasil aumente cada vez mais. Sou um otimista e acredito que cada vez mais produtores, canais e financiadores vão acreditar e investir em ideias ousadas de obras brasileiras em FC”, comentou com entusiasmo o diretor e roteirista Jotagá Crema.
Atualmente, o governo tem feito um desmonte da pesquisa científica cancelando bolsas e trazendo de volta ao Brasil pesquisadores em plena atividade em outros países. Não seria esse um estopim para uma produção ainda mais visceral e agressiva de ficção científica questionando o eterno descaso do nosso país com o conhecimento científico?
Para concluir, apesar de ter começado esse texto com certa desesperança e surpresa por não conhecer com profundidade a história do audiovisual de ficção científica brasileiro, acredito que vivemos uma era de inúmeras possibilidades. Até mesmo a existência de reflexões textuais como essa revelam uma guinada em nossa produção e um importante resgate dos nossos filmes e seriados de FC é tão necessário quanto acompanhar tudo o que está sendo feito neste exato momento. Por isso, esse texto não tem o objetivo de encerrar todas as discussões sobre a FC brasileira, mas de provocar o interesse por esse universo que precisa ser explorado e expandido.
Publicado originalmente no catálogo da mostra SciFi Brasil – Eles estão entre nós, para a Caixa Cultural Rio.